O amigo Lam
- André Duarte
- 11 de abr. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de abr. de 2018
Ontem fiz um amigo. O amigo Lam. Antes de ontem, anteontem, nem sabia que ele existia. No fundo não existe desde 1982 e só começou a existir em 1902. Mas não importa, é meu amigo apesar de o conhecer já defunto. Entrei no seu mundo e cumprimentou-me com um quadro - de uma vila, numa encosta de casas sobrepostas, em desordem crescente, desconcertada, mundana. Depois outro de que não recordo a imagem. A seguir dois autorretratos, e ainda outro, para se fazer ver. Aí vi-o ainda como um estranho. Seguiram-se algumas fotos de família, pequenas discrições aqui e ali e continuei a conhecê-lo nas salas seguintes. Caminhei pela exposição ao ritmo da sua vida. Décadas de existência. Cresci com o seu percurso, conheci-o no seu caminho.
Quando terminei a visita tinha a certeza de ter feito um amigo, para a vida. Pelo menos para a minha. Sinto ter até uma dívida para com ele, porque o que um amigo como ele fez por mim naquela hora, eu não consigo retribuir. Posso tentar, mas ele fez muito. Porém, penso que ele não levará a mal, a amizade tem destas coisas e não se mede em favores, quando de verdade. No dia em que se colocar um quantificador de fazeres no fundo da sala da amizade, talvez algo não esteja bem. O Lam, que tem por nome primeiro Wifredo, é meu amigo.
Conhecemo-nos ontem numa exposição temporária. Ele na parede, eu a olhá-lo. Cubano, esteve na guerra e na escola, apostou numa carreira e conseguiu-a, pintou muito e bem. Sorte a nossa. Para mais, tinha um sentido de humor bastante apurado. Naquela hora que partilhei a sua companhia, ele dizia palavras e eu limitava-me a escutar, embevecido. A cada quadro ele dizia-me mais, mesmo quando eu pensava – já não é possível. Em alguns fez-me sorrir. Disse tanto. A determinado ponto da nossa conversa comoveu-me, a pontos de me humedecer os olhos pelo privilégio que me fez sentir por estar ali. Estava sozinho e gostava que mais pessoas estivessem ali. Talvez mesmo até o Mundo, para escutarem o mesmo, ou mesmo que fosse outra coisa. Porque um amigo como o Lam tem sempre algo mais a dizer e poderá dizer coisas diferentes a cada um de nós. No fundo, queria mesmo que mais pessoas, o maior número possível, conhecesse o Lam, mesmo que não gostasse do que ele tem para dizer. Uma pessoa que diz o que ele diz só pode ser um amigo.
O Lam está em Londres até 6 de janeiro. Alugou residência no Tate Modern. Tem bom gosto. Vista para o Thames River, várias salas só para ele, centro da capital britânica... O tempo que aqui estiver tem tudo para ser bem passado. Depois irá certamente fazer novos amigos pelo Mundo. O que ele tem a dizer merece ser ouvido, naquele escutar leve, prazeroso, como um bater de ondas na praia, calmo, sereno, majestoso. Temos que lhe dar tempo para a conversa fluir. Deixá- lo falar, escutá-lo ainda com maior atenção. Depressa vamos sorrir, ser surpreendidos com uma piada subtil enevoada num discurso austero, de uma aparência séria na forma, hilariante no efeito.
Além de amigo, o Lam é um Senhor. Senti-me preso tal a soberba da sua argumentação. Que deleite. Quando de novo abri a porta do nosso Mundo que tinha como cartão de entrada a palavra exit, timidamente, com pena, ainda olhei para trás uma última vez, num vislumbrar rápido, relanceado, triste. Pensei em recuar, ouvi-lo mais alguns instantes, mas preferi não o fazer. Por mais tempo que passássemos juntos, sabia que tinha de o deixar e seguir o meu caminho deixando-o no dele. Seria adiar uma separação que sabia inevitável. Um analgésico para uma conversa que tinha o fim sentenciado. Resisti e segui, com um breve girar de cabeça em que os olhos já nada viam, banhados por uma nostalgia turva, de despedida. Talvez um dia voltemos a estar juntos, a conversar. Aí também gostava de ter algo te para dizer. Até lá Lam.
Novembro, 8, 2016
André Duarte



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