A sociedade do melindre
- André Duarte
- 27 de abr. de 2018
- 3 min de leitura
Há dias lia um artigo na Visão e descobri que sou Xennial, depois de um teste rápido que o acompanhava. Em dez perguntas passei a membro integrante de um conceito pertencente ao sociólogo Dan Woodman. De ambos desconhecia a existência.
Segundo a publicação, o conceito reporta-se à “geração (aliás, microgeração) nascida no período de sete anos que separa os Xers, inclinados a pessimismos e nostalgias do tempo em que não existia a internet nem o smartphone e a vida parecia mais fácil, dos Millenials, que só conhecem o registo tecnológico e não concebem a vida sem wi-fi.” Pessoas entre os 34 a 40 anos eram assim as visadas. Como a fruta fora de época, aos 27 folguei em saber.
Numa sequência de verdadeiro e falso, as perguntas viajavam entre recordações da série Marés Vivas, saber alguns números de telefone de cor, ter um leitor de CD guardado ou saber o que são 500 paus. Li tudo numa revista em papel. Com folhas que temos que passar e cortam dedos. Um objeto Xer num tempo Millenial lido por um Xennial. E eu que sempre achei que difícil era saber a tabela periódica.
Dias antes acompanhava em direto um daqueles grandes acontecimentos que fazem parar o país, fruto da sua importância social em termos estruturais e anímicos - o Benfica/Guimarães para a Supertaça. No final a realização fez um zoom out sobre a zona do peito de uma adepta benfiquista, com as bancadas em fundo, desfocadas. Estava com amigos e ambos reparámos no belo plano, talvez o melhor de todo o encontro, aprovámos e a vida continuou.
No dia seguinte fiquei boquiaberto com as notícias: “Realizador da Supertaça pede desculpa: - Não me revejo nos epítetos de ordinário", titulava uma notícia de O Jogo, “Realizador da Supertaça desculpa-se por plano atrevido”, aludia o Jornal de Notícias, “Realizador faz plano de seio de adepta benfiquista e pede desculpa”, detalhava o Correio da Manhã.
O realizador veio justificar-se: “Perto do fim da transmissão do jogo da supertaça, foi emitido um plano que envergonha valores fundamentais. (...) Escusado seria afirmar que não faltam testemunhas do triste episódio mas, o que julgo mesmo importante é deixar aqui as minhas desculpas aos espectadores e, sobretudo, à adepta benfiquista. Creiam que toda a equipa ficou de rastos.”
Percebi que a confusão era apenas minha, porque há critérios: planos de fervorosos adeptos em tronco nú, por vezes a salivarem efusivamente impropérios a equipas de arbitragem, jogadores, treinadores e a tudo o que respire, são consensualmente aceites como dignos e parte do espetáculo. “Agora seios! Ainda por cima de perto? Um horror.”
O avô de um Xer, olharia para a imagem, orgulhava-se da transmissão, comia um tremoço e dava um gole na mini. O Gervásio ainda podia indignar-se, mas diziam- lhe logo: - “Se calhar não gostas”. No fim do jogo já ninguém se lembrava do plano e tudo morria no café do Nácio. No dia a seguir a preocupação era o anúncio da saída do Ovik (nome fictício) que dava segurança no meio campo e o da contratação do Supurovik (mais um nome fictício, que sendo também vik, deverá partilhar a nacionalidade, quem sabe primos) que nunca se havia imposto na sua fugaz passagem pelo Granada.
O neto de um Xer vê a imagem, e sem saber bem o que acha ainda, já se acha indignado e a partilhar o seu melindrado sentimento nas redes sociais, uma ação em que pensar e agir nem sempre são critérios seguidos pela devida ordem. Rapidamente a publicação colhe um assentimento discordante que facilmente extravasa os limites do bom senso, amplificado pelo heroísmo prosaico que nos garante a segurança de estarmos atrás de um ecrã.
Desde sempre que o ser humano é perito em dizer coisas, que têm o valor de coisas. Porém, há momentos em que opiniões com o valor argumentativo de amendoins, cuspidas como tremoços para o prato da indignação pela sociedade dos susceptíveis, são olhadas como grandes coisas, quando não passam de coisinhas. Tudo porque o Nácio já tem wi-fi e o Gervásio, filho, não deixa passar, e o Mendes que está a ver o mesmo que eu no Luxemburgo também topou porque já fez gosto, apesar do comentário desagradável do Fonseca que também não importa nada porque nunca percebeu de bola, e isto merecia era uma petição no Facebook para que o realizador nunca mais pegasse num tripé, e só não o faço porque já é tarde e tenho que ir embora.
Em Portugal sempre foram as grandes questões que intestinalmente fizeram o povo rebelar-se. Esta foi mais uma, a diferença é que a internet é um café com muitas mesas do lado, algumas com uma redação à porta.
Agosto, 20, 2017
André Duarte



Comentários