Ato eleitoral, o dia de todas as coisas
- André Duarte
- 27 de abr. de 2018
- 4 min de leitura
No dia 1 de outubro fui exercer o direito de pegar num papel e colocar uma cruz, não colocar uma cruz, ou apostar em desenho livre. Penso que para os candidatos o dia do ato eleitoral deve ser o equivalente ao dia do casamento. Acordam de manhã, confiantes, vestem o seu melhor fato, perfumam-se, colam o sorriso, preparam a felicidade e saem vigorosamente à rua para encarar garbosamente o mundo. Na igreja a tarefa é facilitada. Salvo raras exceções, sabem que já ganharam. Nas eleições, pelo menos a maioria, sabe que dificilmente ganhará. Se não sabe, devia.
Da nossa parte, o banho fica ao critério de cada um, a indumentária não precisa de ser a melhor, o perfume basta o razoável, o sorriso é relativo e a confiança levanta dúvidas. Para alguns, certamente, a ideia de onde colocar a cruz persegue o pensamento até ao momento de estar com os papéis à frente e continuar na mesma. Às vezes tão simplesmente pela ação da campanha se cingir a cartazes colados nas ruas, ou ao convite extensível à população, por via de panfletos, para a apresentação da lista, com garantia da presença do “tradicional porco no espeto” e DJ’s noite dentro. E todos sabemos que quando há porco e dá para repetir, a concorrência é obrigada a reforçar o programa eleitoral, pelo menos, com uma ementa que inclua sobremesa, senão arrisca-se a ver os votos irem nos guardanapos da oposição.
É neste contexto partidário, de forte sensibilização social e sensação de dever cumprido por parte dos candidatos, que chega a nossa vez. Votar. Mal chegamos ao local a agitação é geral. Cabeças de lista, suplentes, pessoas que aparecem em 27o lugar nos folhetins, que devem estar nas listas sem saberem, apoiantes, amigos, simpatizantes e pessoas que só querem passar para tentar chegar à sala de voto. Neste processo, nós, os eleitores, somos olhados pelos candidatos como se levássemos o seu X na testa. A satisfação de que só eles existem na nossa folha é tocante. Todos pensam que vamos votar neles. E, se pudessem, creio que o sonho seria existirem solitariamente como única opção no nosso boletim de voto. Depois há os galhardos e festivos apertos de mão de pessoas para quem passamos a existir naquele dia, das oito da manhã às sete da tarde, que nos cumprimentam com descabida espampanância como se nos quisessem ficar com o pulso, além do voto.
Tudo isto é belo, porque se encontra no armário das coisas que só acontecem esporadicamente e sabemos repetirem-se sempre da mesma maneira sejam quais forem as caras em sorte.
No entanto, por mais simples que pareça, o ato eleitoral pode ter os seus imponderáveis:
No meu caso, comecei por falhar a sala. Haviam mudado os números de eleitor. Rascunharam-me o novo num papel e lá fui confiante para a minha segunda tentativa de voto. Dessa acertei. Entrei calmamente, acompanhando o movimento com um “bom dia” tímido, condicionado pela solenidade reinante no interior. Mandaram-me esperar fora. Duas pessoas votavam, só após alguma sair outra podia entrar.
Assenti e esperei. À segunda tentativa para entrar novamente na segunda sala de voto repeti o “bom dia”, agora já confiante e sorridente, sentindo a camaradagem amiga de quem já é da casa, que colheu réplica nas pessoas que me viam pela primeira vez duas vezes em coisa de minutos. Um ambiente que ganhou maiores contornos de afabilidade e descontração quando quem recebeu o meu cartão recém rascunhado não sabia se a meio do número havia um 4 ou 9, debate que também havia tido comigo mesmo a caminho do encontro com a segunda sala. Satisfação geral. Em segundos, uma sequência de acasos pôs fim à aura altiva de que geralmente se reveste o ato. Estava agora muito mais à-vontade para exercer o direito ao voto.
Entretanto deram-me três papéis. Surpreso por não esperar tantos, peguei neles e fui votar. Ainda mal os tinha pousado e agarrado a caneta, qual não é o meu espanto quando sinto a presença de um olhar fixo em mim, próximo, demasiado até, como se me estivesse a copiar.
Olhei sorrateiramente, como se não quisesse ser visto e eu é que estivesse a prevaricar, e percebi que de facto alguém, mironemente, espiolhava o meu sigilo eleitoral. Uma eleitora em potência, com os seus 6/7 anos, estava mais interessada no meu boletim de voto do que no da entidade paternal. Parei e, nos olhos, encarei-a. Ela percebeu, desviou-se para junto do seu ente e desapareceu do meu campo de visão.
Mal voltei aos papéis, novo olhar. Pensei, “olho, não olho, digo, não digo.” Olhei. Recuou. Votei. Voltou. Olhei. Recuou. Olhei. Recuou. Votei rápido. Voltou. Perdi- me. Pressionado reparei que ainda havia o papel verde e eu a ver uma infração a acontecer impunemente para lá boca das urnas, já nas gengivas, da lei.
Olhei uma última vez com a cara mais séria que pensei que conseguia fazer e aproveitei um último recuo para votar à pressa, dobrar tudo e ir-me embora.
Meio atordoado, mas munido do alívio de superar tais dificuldades, cheguei à urna. Coloco o primeiro papel e mais de meio ficou de fora. Foi a estocada final. “Depois disto tudo agora é o papel que não entra”, um pensamento que na mesma fração de segundo que apareceu ficou diluído por um segundo, mais clarividente - a urna estava cheia. Era o branco, para a Assembleia de Freguesia. Tive então que empurrar a Assembleia com outra Assembleia – Municipal - que por sua vez foi forçada pela Câmara. E, volvido o esforço inicial, lá houve espaço para as minhas Assembleias encontrarem espaço junto das de outros votantes e a Câmara ser acondimentada num qualquer lugar esquecido no interior da urna.
Chegados às 19h00, 4.238.379 eleitores abstiveram-se. Hoje percebo porquê.
Novembro, 5, 2017
André Duarte



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