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Pequenos prazeres

  • Foto do escritor: André Duarte
    André Duarte
  • 10 de mai. de 2018
  • 3 min de leitura

À lareira sentado estava. Um momento que lhe proporcionava a pacatez que a vida lhe tirara. Um quente e sonoro crepitar animava uma sala deserta de vida. A luz, morna, aconchegava o ambiente, envolvia-o, como um regaço paterno. Suspirava a vida, que bom era vivê-la, mas melhor seria aquela que estava por viver, como um espaço vazio à espera de ser preenchido.


Ele era o obreiro de si próprio nessa obra que era única e exclusivamente sua e que só com ele existia. No momento em que ele deixasse de o ser, esse espaço não mais o seria também.


Nisto indagava quando um ranger de madeira o colocou de novo em sintonia com o mundo. Era a mãe. Trazia chá e a perna manca. Há anos esta. O chá era coisa mais recente. E servi-lo era coisa rara. Veio com a velhice de ambos. Ela tinha 90. Ele tinha menos, naturalmente.


As visitas aconteciam sempre ao final de tarde, quando a vida dele as possibilitava a ela. A vida não facilitara nada ao longo dos anos. Geralmente recebia-o com um brilho no olhar. Sem palavras. Era sinal que estava tudo bem. Conduzia-o para a sala que preservara intacta desde que ele, então jovem, saíra naquela manhã em que o ano deixa o verão e acolhe o outono, para continuar a abraçar os estudos. Nessa altura ambos sabiam que ele não ia voltar. Nenhum tocou no assunto. Despediram-se já com enorme saudade. Ainda nada havia acontecido. Com carinho, ela ajeitou-lhe a gola da camisa e alertou-o para a alça da mala, descosida.


Quando a boca algo tinha a dizer, levava consigo o brilho, absorvia-o. Algo havia. Nessas alturas era a cozinha o seu palco. Ele ouvia-a com atenção. Invariavelmente acabava o solilóquio no sorriso dele e no alívio dela. Bebiam sempre chá, preparado pelo saber dela numa cafeteira que já fervera muitos serões de lamentos, herdada da sua bisavó. Quente, carinhoso, não havia outro como aquele, para ele. Para ela, era só chá, que preparava desde tempos tão remotos, em que fica o saber e esquece a memória. Sabia a vida. Tudo a uma mesa de madeira revestida a nódulos, já gastos, que abrigava bancos lascados por um incansável uso.


Ele admirava-a, apesar de não o dizer. 90 anos e só mancava. Ele era intolerante ao glúten. Ela comia tudo, ele via, acompanhando-a no chá. Viviam felizes. Eram felizes. Ela, há muito reformada, ganhava o mais que bastante para o quotidiano. Ele, há muito pensava na reforma, que estava próxima, auferia o suficiente para as despesas.


Aquelas tardes reconfortavam-lhe a alma, como se acabasse de sair de um grande espetáculo. Desligava do mundo, que passava a ser somente dos dois e das preocupações dela. Ele ia sempre bem, para ela, nunca se queixava. Não queria enfastiá-la com as suas questões que, como na maioria dos casos, pensava, não eram sequer questões, apenas idiossincrasias da vida de fácil resolução e que poderiam ser celeremente solucionadas. E na generalidade dos casos não se enganava. Por isso, para quê agitar a sua bonita idade de 90? Não. Via-a como uma maravilhosa porcelana. Delicada, frágil, de uma beleza riquíssima, que devia ser tratada com todo o carinho, cuidada, para não estragar e mantida a uma certa temperatura ambiente. Essa temperatura só era conseguida, se as aflições mundanas ficassem à margem da obra.


90 anos mereciam tudo, ria-se por dentro. Queria mais 90. Prescindiria mesmo dos seus, se lá chegasse e pudesse, para os dar a ela.


Já ela via-o como o seu menino. Nessa condição de si nasceu e assim se manteve ao longo da vida, mesmo com os seus 1,83m. A viuvez só fora conseguida superar porque o menino com ela estava, sempre ali, para a apoiar. Não fraseava a afeição que sentia pelos demais. Era uma mulher de atos. Ah, e se os atos falassem, a sua biografia podia encher vários tomos.


Amigos já não tinha, levara-os um dia a idade. Outros a doença. Outros perdera- lhes o rasto ou perderam-se no caminho. Sobrava ela, a sua bengala, a sua casa, a sua vida, e o seu rebento. Nem uma dor aqui e ali a incomodavam. Vivia e bem. Tinha orgulho nele. Um sentimento recíproco que os unia.

Um dia, tomando o costumeiro chá na vulcânica cidade de Nápoles, não foi a cafeteira a única a aquecer. De mãos dadas e canecas cheias, ambos seguiram o seu caminho para parte incerta. Hoje continuam felizes, juntos, para lá da vida.


André Duarte

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