Encanto
- André Duarte
 - 11 de abr. de 2018
 - 3 min de leitura
 
Atualizado: 13 de abr. de 2018
Caminhavam à beira de um rio que ali era porque assim nascera. O rio, encorpado por uma viva água, que parecia esverdear à luz do dia. Mas era noite. Sendo-o, só massa escura, avivada por candeeiros que o acompanhavam há anos, mas que lhe alternavam em existência. De dia, ausentes do mundo, perdiam a cintilância que o sol atribuía às águas. À noite, despertos, era o rio que se cobria de ausência. Uma dicotomia que a todos acompanhava. Também a eles. Naquele dia nevara. Neve que cai, fresca, branca, viva, alongava-se pelo mundo. Deles. Dos outros. Depois ia chover. Haveria de chover. A chuva tem a singularidade de matar a neve. Uma criminosa. Ou então o tempo, calmo, sereno, que faz dos segundos a contagem que delimita a linha da vida da neve. Que sabe que se não cair, irá, pouco a pouco, desaparecer, num vagar entediante que faz tremer a espera, dada tamanha lonjura. Um aqui e ali de gelo-água. Gelo-água, gelo-água. Tudo gelo-água. É gelo-água pensava ele. Derrete porque vem calor, ou o frio não se consegue manter à temperatura necessária. É vencido. Vencido. A derrota faz florescer a água, que escorre. Se aquecermos gelo escorrido vem vapor. Quente. Sentia-o. Nele. Nela. Nela. Nele. Neles. Via luzes que o viam, desfocadas, no seu olhar. Uma intensidade de derreter o gelo, pelo menos, do mundo. Preocupou-se com o Ártico. Ela podia derretê-lo.
Os pensamentos convidaram-no a tropeçar no passeio. E tropeçou. Ela sorriu. Por ela tinha caído, se isso valesse a gargalhada. Riu-se para si. Seguiram num mundo só deles, que convivia numa existência física com o de outros que não viam. Percebiam-lhes a presença numa névoa, desfocada, disforme, como um contorno mutável que os ornava, numa moldura em que eram centro e lados, vida e existência, eram.
Sentiam que a linha da vida podia ser só aquele momento. Nascer para viver só aquele momento. Um momento. Que mais é a vida? Um momento, pensava. Ela só brilhava. Brilhava como foco único, ponto de partida e chegada. O rio era passado. A noite agraciava-os. A rua onde estavam havia-se despedido do dia que fora. Dormia. Quando se aperceberam a rua eram eles. Nesse momento penetraram na realidade a que o físico nunca fora alheio. A consciência via para além do outro. Não havia era ninguém. A respiração voltou a encontrar sintonia, através do sentimento partilhado do sentimento pensado. Iam de mãos dadas na alma porque desconheciam de o fazer com a mão. Seguiam o caminho mais longo para que nunca acabasse. Esperavam cruzar a vida lado a lado, junto da certeza de que isso era a vida.
Resolveram tirar os sapatos, gastos de quilómetros de partilha. Tiraram. Ao primeiro pisar do pé, o chão comunicou o seu frio ao corpo. Arrepiou-se. Ela sorriu e parecia levitar. Tudo levitava. Voltaram a calçar-se porque pé descalço não era boa ideia. Era ideia só. Ideia descalça. Estava frio. Enlevados no enleio do momento, decidiram parar. O rio parecia acompanhá-los como um fiel escudeiro sem se aperceberem. Era as suas sombras. Transmitia-lhes conforto, segurança. Estava ali. Sentaram-se num banco feito para sentar. Olharam o rio querendo olhar o outro. Pensavam no outro vendo o rio. Escolhiam palavras e esperavam palavras. Faziam uma troca em conversa. Pensavam muito o coração. Que batia, batia numa aceleração de poeta na ânsia da criação.
As palavras eram um carrossel de ideias. Esgotavam bilhetes, num atropelo de multidão. O coração pulsava o tempo, não encontrando expressão. Extenuada, a vigília abandonou-os, deixando-os entregues um ao outro. A progressão do sono tomou forma e revestiu-os de um descanso imune ao exterior em que se encontravam, conferindo-lhes um repouso que encontrava lugar para as ideias. Suavemente pendidas, as cabeças comunicavam num respeitoso tocar, encontrando a paz necessária no conforto mútuo da felicidade. O coração abrandou e voltou a deixar ao tempo o encargo das horas.
Exaustos de sentir, adormeceram. Só adormeceram. Não sonhos. Não nada. Como um lugar perfeito revestido de beleza, leve, pura, flutuante. O sono que se reconhece nas pálpebras que a suavidade faz por encostar na ínfima proporção do perfeito, sem choque.
A indescritível irrealidade do momento dava forma real aos pensamentos adormecidos. Eram bebés numa alcova. Dos dois. Meiga, doce, aconchegante. O mundo que passava por eles materializado em pessoas franzia o sobrolho. A rua voltava, lentamente, a acordar, numa balança que fazia a noite esfumar-se na claridade. A inevitável progressão do tempo amanheceu a manhã, e no momento em que os candeeiros deixavam de exercer a sua função, o sol surgiu vigoroso, fazendo luzir o rio, num reflexo de luz de abraçar o mundo. Tudo despertava.
Uma brisa ocasional passeava nesse mesmo instante pelo lugar de ambos, ajudando as pálpebras a receber o novo dia. Os olhos tomaram a forma de sorrisos. O rio acordara azul. O sol focava-se neles. Solitária, uma gaivota voava invejando-os juntos.
André Duarte



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